Microrganismos na Proteção de Culturas durante o El Niño
Descubra como a microbiota do solo desempenha um papel fundamental na defesa das culturas agrícolas contra os impactos das secas causadas pelo El Niño.
Descubra como a microbiota do solo desempenha um papel fundamental na defesa das culturas agrícolas contra os impactos das secas causadas pelo El Niño.
Por: Adailson Feitoza de J. Santos
Prof. Dr. Universidade do Estado da Bahia – Campus VIII
Laboratório de Ecologia e Biotecnologia Microbiana do Semiárido
O fenômeno El Niño é um padrão climático que tem como centro de origem o Oceano Pacífico ao longo da linha do Equador e afeta o clima em todo o mundo. O fenômeno traz como consequências, para o Brasil, a possibilidade de elevação das temperaturas e estiagens em partes das regiões Norte e Nordeste; já em algumas partes da região Sul, o fenômeno deve causar excesso de chuvas (CNN, 2023).
Os dados das agências oficiais têm mostrado uma elevação das temperaturas globais, o que tem contribuído com maiores períodos de estiagens e secas mais frequentes, além de diversos outros problemas. De acordo com dados levantados pela National Aeronautics and Space Administration – NASA, a temperatura da Terra subiu 1,1ºC desde o início das medições em 1880. Parece pouco, não é? Mas vamos considerar que, para cada décimo de grau de aquecimento, aumentam as ameaças às pessoas, espécies e ecossistemas. Assim, mesmo o limite de 1,5ºC (meta global do Acordo de Paris) não é seguro para todos (LEVIN, 2022).
Os efeitos das mudanças climáticas são muito críticos para os sistemas agrícolas. As projeções apontam que a elevação das temperaturas pode ocasionar: perdas de safras devido ao impacto direto e indireto de plantas daninhas, insetos e doenças que acompanham as tendências das mudanças climáticas; variações anuais na produção agrícola e redução na qualidade do solo e da água devido ao aumento das precipitações; intensificação dos períodos de secas e veranicos mais extensos, entre outros.
Seria possível utilizar os produtos biológicos já registrados para a mitigação dos efeitos climáticos?
Já temos comprovação do grande impacto positivo que os microrganismos têm apresentado para os sistemas agrícolas. É inegável, e o mercado nos mostra isso, que a grande quantidade de produtos biológicos registrados, seja com função de biodefensivos ou mesmo para contribuir com a nutrição vegetal, têm contribuído com maior sanidade nas culturas e em muitos casos elevado a produtividade de diversas culturas agrícolas.
Parte desses produtos têm microrganismos que de alguma forma conseguem também induzir tolerância ao déficit hídrico. No entanto, ainda existem poucos produtos registrados e direcionados para esta função. Isso mostra claramente que ainda há um gap na resolução da problemática da seca utilizando ferramentas biológicas.
Mas qual será o motivo para essa baixa oferta de soluções específicas para o problema? Será que os microrganismos não conseguiriam atender, de forma eficiente, esta demanda?
Vamos sair do mundo comercial dos microrganismos, enquanto produtos, e vamos mergulhar no mundo natural destes seres tão impressionantes.
Todas as plantas, em maior ou menor concentração, apresentam microrganismos associados a todos os seus tecidos. Esta associação acontece nos tecidos externos, nos tecidos internos e no solo. Cada microrganismo pode, em maior ou menor escala, estabelecer relações que sejam benéficas para as diferentes culturas. E um desses benefícios tem sido a indução de tolerância ao estresse hídrico.
Mas como será que isso acontece? Como um microrganismo, bactéria ou fungo teria a capacidade de “matar a sede” das plantas?
Sempre que falamos em indução de tolerância à seca, estamos falando de diversos mecanismos que podem ser ativados nas plantas e modulados pela presença dos microrganismos. Diferente da solubilização de fosfato e fixação biológica de nitrogênio, não temos apenas um ou dois mecanismos envolvidos nesse processo. O processo é complexo e atua em diferentes “alvos”.
Os microrganismos conseguem modular a morfologia, a fisiologia e a bioquímica das plantas, possibilitando que tais alterações auxiliem durante os períodos de seca e de veranicos. Como exemplo, algumas bactérias e fungos, em condições de baixo fornecimento hídrico, podem alterar a arquitetura radicular vegetal, induzindo maior comprimento e maior produção de pelos radiculares (ALWUTAYD, 2023), o que consequentemente capacita a planta a explorar uma maior área de solo em busca de água e nutrientes. O aumento da taxa fotossintética também é uma característica apontada como sendo responsável pela indução de tolerância ao déficit hídrico, induzida por diferentes microrganismos (YANG, 2021; ZHANG, 2021).
Aumento da concentração de ácido indol acético e redução da taxa de produção de etileno, ocasionada pela produção da enzima ACC deaminase, são também alguns dos mecanismos utilizados pelas plantas, induzidos pelos microrganismos associados, para reduzir os efeitos negativos do déficit hídrico (UZMA, 2022; CHANDRA, 2020). Além de todos esses mecanismos, ainda é possível haver o aumento da síntese de enzimas antioxidantes para bloquear a ação das espécies reativas de oxigênio (EROS), bem como aumento e acúmulo de substâncias como osmólitos (dentro das células), como trealose e prolina, que garantem o ajuste osmótico reduzindo a perda de água celular ocasionada pela elevação das temperaturas e menor oferta hídrica nos sistemas (ASHRY, 2022; NIU, 2022).
A formação do biofilme no sistema radicular também tem sido considerada como um dos principais mecanismos relacionados à indução de tolerância à seca. De maneira geral, microrganismos produtores de exopolissacarídeos (EPS) são capazes de colonizar o sistema radicular e estabelecer uma população inicial. Em seguida, com a produção de mais EPS e o acúmulo de diferentes espécies microbianas, forma-se o biofilme. O biofilme cria uma espécie de micro-habitat, com elevada umidade e retenção de grande parte de nutrientes e moléculas trocáveis entre a planta e os diferentes microrganismos do biofilme. Esta comunidade retém maior quantidade de água no sistema radicular, reduzindo a desidratação ocasionada pela elevação das temperaturas e menor oferta hídrica no sistema (KARIMI, 2022).
Assim, de maneira geral, a microbiota mitiga os efeitos do déficit hídrico por meio da formação de biofilme, da produção de osmólitos, da síntese de hormônios, das enzimas antioxidantes, dos antibióticos, da interação microrganismo-microrganismo, da simbiose, da produção de ACC deaminase, da formação de sideróforos, da produção de compostos orgânicos voláteis e da produção de ácidos. Estes mecanismos induzem uma série de respostas nas plantas, como o aumento do comprimento e da biomassa radicular, o aumento da taxa fotossintética, a maior captação de nutrientes, o aumento da atividade antioxidante, a osmoprodução, a supressão de doenças, o aumento da fertilidade do solo e a reprogramação transcricional de genes indutores de tolerância à seca (ALI, 2022).
Fica claro que, quando pensamos nos microrganismos como ferramentas para indução de tolerância à seca, devemos considerar sobretudo a estimulação da maior diversidade microbiana, principalmente com base no entendimento de que cada grupo microbiano poderá atuar de forma diferente e expressar vários mecanismos de tolerância à seca. É possível sim considerar diversas espécies já utilizadas para outras funções, como os bionematicidas/biofungicidas ou bioestimulantes, em programas de indução de tolerância à seca, uma vez que irão desencadear diversos benefícios para as culturas. Mas é possível considerar a seleção e o uso de novos microrganismos, isolados ou consorciados, com potencial para indução de tolerância à seca em diversas culturas e com performance em diferentes regiões do Brasil.
Talvez ainda haja tempo para reduzir o avanço das mudanças climáticas, talvez! Mas estamos considerando ações que poderiam ter um efeito no longo prazo. Os prejuízos ocasionados pelos eventos de seca são atuais e é urgente tentar combater este problema no curto prazo. Desta forma, os microrganismos são uma excelente ferramenta para proteger as lavouras dos efeitos negativos ocasionados pelas mudanças climáticas, especialmente durante períodos de secas e veranicos.
A nova grande revolução do agro é micro!
ALI, S. et al. 2022. Deciphering the plant microbiome to improve drought tolerance: Mechanisms and perspectives. Environmental and Experimental Botany, 201,104933,
ALWUTAYD, K. M. et al. 2023. Microbe-induced plant drought tolerance by ABA-mediated root morphogenesis and epigenetic reprogramming of gene expression. bioRxiv 2023.01.03.522604.
ASHRY, N. M. et al. 2022. Utilization of drought-tolerant bacterial strains isolated from harsh soils as a plant growth-promoting rhizobacteria (PGPR). Saudi J Biol Sci.;29(3):1760-1769.
CHANDRA, D. et al. 2020. Rhizobacteria producing ACC deaminase mitigate water-stress response in finger millet (Eleusine coracana (L.) Gaertn.). 3 Biotech.;10(2):65.
CNN – BRASIL - https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/fenomeno-el-nino-esta-de-volta-informa-agencia-entenda-os-efeitos-para-o-brasil/
KARIMI, E. et al. 2022. Biofilm forming rhizobacteria affect the physiological and biochemical responses of wheat to drought. AMB Expr 12, (93).
LEVIN, K., BOEHM, S., CARTER, R. 2022. 6 Big Findings from the IPCC 2022 Report on Climate Impacts, Adaptation and Vulnerability. World Resources Institute. Disponível em: https://www.wri.org/insights/ipcc-report-2022-climate-impacts-adaptation-vulnerability
NIU, S. et al. 2022. The osmolyte-producing endophyte Streptomyces albidoflavus OsiLf-2 induces drought and salt tolerance in rice via a multi-level mechanism. The Crop Journal, 10(2):375-386.
UZMA, M.; IQBAL, A.; HASNAIN, S. 2022. Drought tolerance induction and growth promotion by indole acetic acid producing Pseudomonas aeruginosa in Vigna radiata. PLoS One. 4;17(2):e0262932. doi: 10.1371/journal.pone.0262932. PMID: 35120147; PMCID: PMC8815908.
YANG, N. et al. 2021. Emergent bacterial community properties induce enhanced drought tolerance in Arabidopsis. NPJ Biofilms Microbiomes 7, 82 https://doi.org/10.1038/s41522-021-00253-0
ZHANG, H.; SUN, X.; DAI, M. 2021. Improving crop drought resistance with plant growth regulators and rhizobacteria: Mechanisms, applications, and perspectives. Plant Commun. 4;3(1):100228. doi: 10.1016/j.xplc.2021.100228. PMID: 35059626; PMCID: PMC8760038.